MEMÓRIAS
Soube hoje do falecimento de um grande amigo. Amigo de infância, desses de todas as horas. Amigo daqueles que a gente sempre menciona quando conversa com alguém. Daqueles que nos valemos como parâmetro quando medimos a nossa interação com os outros.
Morávamos distantes, nestes últimos anos, mas nunca passaram mais de dois dias sem que nos falássemos. Foram milhares de e-mails, de cartões postais, de faxes e telefonemas. Foram muitas as visitas dele com a família à minha casa. Foram viagens juntos e anotações sobre lugares, cidades e países escritas a quatro mãos. Nos maravilhamos, simultaneamente, com belezas muito além do que nossos guias de viagem anunciavam. Em ocasiões, demos boas gargalhadas das "ciladas" em que nos metemos. Temo, agora, te-lo incomodado além da conta com minhas ranhetices, teimosia, reclamações estapafúrdias ou de não ter-lhe dado mais atenção quando sentia alguma angústia camuflada, em suas palavras. Já não há mais tempo, nem sentido em querer corrigir o que sempre pareceu perfeito.
Seu filho mais velho, que é meu afilhado, ligou-me antes de amanhecer o dia. O som do telefone, àquela hora, não era bom sinal e vinha a arrematar uma noite mal dormida. Calmo, ele me contou que o pai morreu dormindo, sem nenhum aviso, nenhuma forma diagnosticada de doença, sem ter comunicado nenhuma dor ou alteração. Morreu como viveu: sem incomodar, sem chamar atenção, sem provocar sofrimentos desnecessários.
Desliguei o telefone, depois de falar com minha comadre e os outros filhos, e, sem saber o que fazer ou onde fixar meus acelerados pensamentos. Caminhei até a janela e olhei aquela luz mágica das manhãs ensolaradas. E numa fração de segundo lá estávamos, crianças e amigos que sempre fomos, brincando nas árvores do quintal lá de casa, aborrecidos numa viagem de férias dentro da Rural Willys do seu pai, correndo, pela primeira vez, de encontro às ondas do mar, assistindo a matinê de domingo num cinema que nem mais existe e torcendo que a cavalaria chegasse a tempo de salvar a diligencia dos impiedosos peles-vermelha.
Não sei bem porque, mas pensei em pegar uma única carta no deck de tarot que fica sobre a escrivaninha. Talvez quisesse, naquele instante, uma palavra de consolo a ser dada por uma imagem. Que houvesse algo ou alguém enchesse de sons o silencio desta manhã e que ecoassem, preenchendo o vácuo onde estava mergulhado. Que, se não mais cartas, mensagens, telefonemas, eu ao menos encontrasse uma forma de não perder o contato com meu amigo que partira sem dizer adeus. Mas, confesso que não tive coragem. Temi não surgisse o 6 de Copas, aquela carta que é uma explícita mensagem de que o passado é apenas um tempo de verbo que conjugamos para não confundir a memória.
Deixei o tarot de lado e fui olhar, mais uma vez, fotos nossas em tempos e lugares diversos. Reli seus últimos e-mails e busquei umas anotações que ele redigira em algumas das páginas de um livro que havia lido e me enviara. Decidi escrever para a sua família, lembrando nossa amizade e reforçando o meu mais profundo amor por todos eles. Agradeci a herança que ele, sempre tão generoso, me legara: não apenas as lembranças de um grande amigo, fiel e sempre presente mesmo quando grandes distâncias nos separavam, mas também toda uma família que eu aprendi a amar como minha.
Expliquei-lhes que não estarei presente ao seu enterro. Justifiquei que não chegaria a tempo, que irei nos próximos dias para estar com eles. Mas isso não é toda a verdade.
Teria que viajar para ir de encontro a um ritual de despedida, mas como despedir-se de quem vive para sempre criança, brincando num quintal guardado na memória?
Alex Tarólogo
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